Imprimir esta página
06 de Junho, 2016

As faces da privatização da água

As faces da privatização da água

Artigo de Silvia Ribeiro, pesquisadora do Grupo ETC. Leia na íntegra.

Silvia Ribeiro*

As faces da privatização da água

A América Latina é o continente de maior injustiça com relação ao acesso à água. Segundo Maude Barlow, ativista canadense e referência mundial em relação ao tema, embora tenhamos o maior volume de água doce per capita, com 20% do total mundial, a população do continente só tem acesso a 1% dessa água disponível.

Este dado, em conjunto com muitos outros, faz parte dos desafios relacionados às crises da água que camponeses, povos indígenas, sindicalistas, integrantes de movimentos urbanos, pesquisadores, estudantes e organizações da sociedade civil começaram a debater nas oficinas em defesa da água, realizadas no México entre 25 e 28 de abril próximo passado, convocados pelo Centro de Análises de Formação Social, Informação e Formação Popular (CASIFOP), junto ao Instituto Polaris do Canadá e organizações mexicanas e internacionais.

Com contribuições de mais de 400 participantes de todo o México e 10 países latino americanos e norte americanos, tornou-se evidente que há uma crise de água com características comuns em todo o continente. As origens desta crise são as mesmas: Apropriação privada dos recursos hídricos por várias transnacionais, favorecidas pelas políticas de organismos como o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comercio e os tratados de livre comercio. Porém, a privatização tem distintas faces e nos afeta de muitas maneiras. As transnacionais manipulam os dados das crises para justificar a expropriação e o aumento da privatização, culpando o cidadão comum, os camponeses e os serviços públicos pelo mau uso e má administração. Por tudo isso é imprescindível construir nossos próprio mapas das crises e os caminhos para enfrenta-las. A partir das pesquisas, dos testemunhos e apresentações em workshop, Andrés Barreda, de Casifop, e Tony Clarke, do Instituto Polaris, resumiram algumas das faces que assume a privatização da água no campo e na cidade.

• Privatização dos territórios e bio-regiões

As empresas que comercializam e/ou necessitam de água bruta para as suas atividades, buscam a privatização de territórios e bio-regiões inteiras para garantir o controle monopolista sobre o recurso, garantido por alterações na legislação. Já acontece, por exemplo, com o mar no Chile. Isso ocorre também, através da titulação individual de terras coletivas de camponeses e indígenas como ocorre no México. Há também a separação da terra, dos poços e fontes de água que estão neles, colocando ambos no mercado. Essa tem sido outra forma de privatização do território.

• Privatização através dos desvios de águas

A construção de represas, hidrovias e derivação de rios de seus leitos naturais para abastecer zonas de alto consumo industrial, agroindustrial e urbano, priva do recurso milhões de camponeses e povos indígenas, em muitos casos com deslocamentos que destroem irreparavelmente e suas formas de vida, cultura e economias próprias. Soma-se a isso o impacto sobre o próprio recurso água e ao ambiente que a sustenta, gerando mais escassez no futuro.

• Privatização por contaminação

As indústrias mineradoras, petrolíferas, de papel e elétricas, somada a contaminação por agrotóxicos de agricultura industrial e a outras industrias “sujas”, contaminam as fontes de água como "efeito colateral", apropriando-se de fato de um recurso que é de todos, e dessa forma impossibilitando que outros possam usar.

• Privatização dos serviços municipais de água em zonas urbanas

Através de concessões e contratos de serviços múltiplos, amparadas por novas legislações nacionais de água, as empresas transnacionais se apropriam das redes de distribuição e estações de tratamento de água e passam a fixar as condições de acesso e tarifas à população. O que antes era um recurso público vital e de todos, agora é uma mercadoria que só tem acesso aqueles que podem pagar por ela. Os agentes privados da água lideram os “gigantes” da água Suez y Vivendi (agora Veolia), que controlam 70% do mercado mundial, seguidos por RWE-Thames, Bechtel e algumas outras.

• Privatização através do engarrafamento de água

Não há manutenção adequada das redes públicas de distribuição de água e as políticas tarifárias são injustas para o consumidor comum, ao mesmo em que há subsídios para as industrias engarrafarem a água, o que faz com que as tarifas, para explorar as fontes de água, são extremamente baixas.

O custo final aos consumidores é de mil a 10 mil vezes mais caro, e as próprias garrafas de plástico são um fator de contaminação das águas subterrâneas. Quatro grandes multinacionais de refrigerantes e água engarrafada, lideram este seguimento que tem o monopólio mundial do setor: Coca-Cola, Pepsicola, Nestlé e Danone.

• Monopólio das tecnologias

Ao mesmo tempo em que as industrias esbanjam e contaminam água doce, se apresentam como as únicas capazes de extrair águas mais profundas (tecnologia que usam as petrolíferas), de purificá-las adequadamente, uma vez que a complexidade de fatores de contaminação aumenta em razão das suas próprias atividades (industrial, biológica, salinização de aquíferos). Através do controle monopólico de mercados e patentes de tecnologia, os destruidores do recurso se apresentam como os salvadores, para os quais todos teremos que pagar.

Mas também, por todo o continente, cresce a resistência popular para o enfrentando dos diferentes aspectos deste renovado assalto a aos bens comuns. O desafio é consolidar o tecido comum a partir de cada perspectiva.

*Investigadora del Grupo ETC.

Última modificação em Segunda, 06 Junho 2016 14:28