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09 de Agosto, 2016

Moradias clandestinas e o direito ao acesso à água potável

Artigo de Adriana Bitencourt Bertollo, advogada e consultoria jurídica do Departamento de Água e Esgoto de Bagé (DAEB).

MORADIAS CLANDESTINAS E O ACESSO À ÁGUA POTÁVEL COMO DIREITO DE SEXTA DIMENSÃO

Adriana Bitencourt Bertollo

RESUMO

Convivência dos direitos fundamentais - vida, saúde e propriedade. Moradias clandestinas e infraestrutura básica. Políticas públicas.

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5.º, assegurou direitos e garantias individuais. O célebre rol do documento conhecido como "Constituição Cidadã" estatuiu o direito à vida, saúde, liberdade, intimidade, propriedade, segurança, meio ambiente equilibrado, dentre outros novos direitos.

O presente artigo tem por escopo analisar a convivência e concretização de alguns desses direitos fundamentais. Assim, partiu-se da necessidade de dar um contorno jurídico e social adequado a uma situação fática vislumbrada em inúmeros municípios brasileiros, qual seja, a invasão de áreas públicas para moradia e o acesso à água potável. Aparente colisão de direitos, tais como a indisponibilidade de um direito público e a dignidade da pessoa humana.

Examina-se, portanto, a responsabilidade do Poder Público em proporcionar melhor qualidade de vida às pessoas, em especial garantindo uma distribuição de água potável mais equânime. Desse modo, a partir dos meios jurídicos postos a disposição, propõe-se soluções mais justas e afinadas com a responsabilidade social do Estado.

2 DAS GERAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais, garantidos formalmente pela Constituição Federal, são conhecidos a partir de várias terminologias, dentre elas: direitos naturais, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais e liberdades públicas.

Esses direitos são fruto de longa evolução da sociedade, a saber:

a) Direitos fundamentais de primeira geração: Uadi Lammêgo Bulos leciona que: "a primeira geração, surgida no final do século XVII, inaugura-se com o florescimento das liberdades públicas, é dizer, dos direitos e das garantias individuais e políticas clássicas, as quais encontravam na limitação do poder estatal seu embasamento. Nessa fase, prestigiavam- se as cognominadas prestações negativas, as quais geravam um dever de não-fazer por parte do Estado". Versam sobre o direito à vida, à liberdade de locomoção, à expressão, à religião, à associação, etc.

b) Direitos fundamentais de segunda geração: adveio após a Primeira Grande Guerra, englobando os direitos sociais, econômicos e culturais, os quais impõem ao Estado uma atuação positiva, no sentido de fazer algo de proeminência social ao homem.

c) Direitos fundamentais de terceira geração: versam sobre solidariedade e fraternidade. Como representante dessa categoria está o direito à comunicação, desenvolvimento, meio ambiente equilibrado, vida saudável e pacífica, progresso, avanço tecnológico, etc.

d) Direitos de quarta geração: dizem respeito à manipulação do patrimônio genético, diversidade em geral, globalização da economia e graduação da imposição tributária.

e) Direitos de quinta geração: segundo Guilherme Peña de Moraes, são direito que giram em torno da cibernética.

f) Direitos de sexta geração: Guilherme Peña de Moraes registra o acesso à água potável como um novo direito fundamental, ao lado de outros direitos resultantes da engenharia genética, internet e poluição hídrica.

Zulmar Fachin ensina que deve ser "a água conveniente para o consumo humano, que conserva seu potencial de consumo, de modo a não causar prejuízo ao organismo. Potável é a qualidade da água que pode ser consumida por pessoa humana sem risco de adquirir doença por poluição hídrica".

Carlos Antônio Alves Pontes e Fermin Roland Schramm, ambos da Fundação Osvaldo Cruz, no artigo "Bioética da Proteção e Papel do Estado: problemas morais no acesso à água potável", situavam a saúde pública como um direito de segunda geração:

"A saúde pública, que surge como assunto do Estado nesse mesmo período, exerceu também um papel protetor, controlando epidemias e influindo decisivamente na reforma sanitária dos ambientes urbanos e de trabalho, introduzindo, assim, um segundo nível de proteção, referente não mais a indivíduos, mas sim, a populações, determinando, portanto, o campo dos direitos sociais".

Independente da posição do acesso à potável no catálogo de direitos fundamentais, não é demais lembrar, que a Agenda 21, elaborada durante a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente ("Eco 92"), dedicou capítulo especial à questão da água visando sua recuperação e garantia de qualidade.

No II Fórum Mundial da Água, realizado em maço de 2000 em Haia, na Holanda (2000), foi firmado um documento denominado "Visão 21- Água para o Povo", com a finalidade de que, até o ano 2025, todos os povos tenham acesso às condições básicas de saneamento e abastecimento de água.

A garantia do acesso à água potável, portanto, constitui nuança do direito à vida, que se situa na primeira gama de direitos essenciais, sendo que a qualidade do respectivo serviço de tratamento e distribuição contribui para gerar a satisfação dos direitos decorrentes.

3 CONTRAPRESTAÇÃO DO USUÁRIO DO SERVIÇO PÚBLICO

Segundo Alexandre Rossato Ávila, Juiz Federal da 4.ª Região: "As taxas também podem ser criadas para remunerar o Estado pela prestação de um serviço público utilizado pelo contribuinte ou colocado a sua disposição".

No sentido aqui tratado, sem adentrar no mérito das opiniões defensoras do acesso absoluto ao serviço essencial, há quem defenda a distribuição de água sem o correspondente pagamento. Acreditamos utópica a possibilidade de fornecer um bem de qualidade sem a devida contraprestação.

O Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n.º 201.630, decidiu que é legítima a cobrança do serviço de fornecimento de água pela modalidade do preço público e não da taxa. A decisão proferida entendeu que, em sendo permitida a majoração do preço público mediante decreto, o acréscimo teria a finalidade de refrear o consumo em período de escassez do bem essencial.

Para encerrar a controvérsia, a Lei 11.445/2007, conhecida como o marco regulatório do saneamento básico no Brasil, definiu a possibilidade de suspensão do serviço público de distribuição de água em caso de inadimplemento.

A partir desses critérios, é possível concluir que o fornecimento de água tratada, ainda que às moradias clandestinas, certamente não teria o condão de conferir qualquer direito sobre a propriedade do imóvel, posto que a contraprestação se conecta ao serviço público oferecido.

Tanto é assim, que sequer o recente direito constitucional à moradia também não se confunde com o direito à propriedade.

4 PAPEL DO ESTADO

Historicamente a forma de obtenção de água estava diretamente ligada ao aparecimento de doenças importantes, a exemplo das pandemias de cólera, no século XIX.

Desse modo, a intervenção do Estado, aliada à modernização das técnicas para obtenção de água tratada, foi decisiva para garantir a qualidade deste veículo essencial e, assim, evitar danos à saúde da população.

O papel do Estado, contudo, não se resume à captação, tratamento e distribuição da água potável, exigindo organização dos espaços urbanos, de modo a proporcionar não só adequada ocupação do solo, mas, inclusive, a preservação das condições de salubridade.

Carlos Antônio Alves Pontes e Fermin Roland Schramm, citados acima, propõem a resolução dos seguintes problemas, como fatores essenciais ao acesso à água potável:

"(1) manter opção de gestão pública dos serviços de água; (2) o Estado assumir como obrigação o atendimento às necessidades básicas de acesso universal à água potável; (3) dar prioridade aos investimentos públicos para as demandas do abastecimento de água; e (4) o Estado desenvolver políticas focalizadoras para melhoria do padrão urbano e da moradia das populações em condições precárias de exclusão social, em atendimento aos requisitos da qualidade de acesso à água potável".

Assim, a operacionalização do acesso de água potável pela população, depende da inserção no Plano Diretor, providência prevista pela Lei Federal n.º 10.257/01, conhecida como Estatuto da Cidade, que tem por escopo a regulamentação do artigo 182 da Constituição Federal, in verbis:

"A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes".

5 O ESTATUTO DA CIDADE E A CONCESSÃO DE USO PARA FINS DE MORADIA

Pregado ao art. 182 da Constituição Federal, portanto, está o parágrafo 2.º, a dispor que: "A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor".

Com efeito, a desejada ordenação da cidade e a garantia de infraestrutura à população, não podem ser alcançadas sem instrumentos que amenizem a real situação das moradias populares.

Carlos Ari Sundfeld, comentando o Estatuto da Cidade, perfaz a seguinte análise a respeito da pobreza urbana:

"Urbanismo e pobreza: suas relações oscilam entre o desprezo mútuo e o conflito. A impossibilidade de largas camadas da população terem acesso à propriedade vem sendo tratada como um problema apenas econômico, sem solução específica no campo urbanístico – como se a "ordem urbanística" somente fosse possível na abundância. Por óbvio, o mesmo urbanismo elitista que ignora a pobreza é ignorado por ela. O solo urbano passa a ser objeto de ações clandestinas (invasão de imóveis públicos e de espaços comuns, construções irregulares, ocupação de glebas não urbanizadas e de áreas protegidas) e de relações informais (transações de “posses”, instalação de serviços e equipamentos públicos em favelas, etc.). O resultado é a anemia do direito urbanístico, enredado na contradição entre cidade legal e cidade ilegal".

O citado autor, ao dispor acerca das normas contidas no Estatuto da Cidade, que versa sobre “normas especiais de urbanização (art. 2.º, XIV) destinadas à população de baixa renda, sensivelmente intui que: "a legislação deve servir não para impor um ideal idílico de urbanismo, mas para construir um urbanismo a partir dos dados da vida real".

Aliás, a crítica que se faz à juridicização dos estados de fato presentes nas habitações urbanas, é bem definida por Carlos Ari Sundfeld como equivocada, em especial por confundir "legalização com a petrificação". Prossegue, merecendo destaque:

"O que fez o Estatuto foi impedir que, após qualificar como ilegais certas situações, o Poder Público simplesmente as ignorasse. Com a legalização dos estados de fato, entra em pauta um novo tipo de dever estatal: o da atuação positiva para elevar a qualidade urbanística das situações existentes".

Interessante ressaltar, que a invasão de espaços públicos (áreas verdes), em muitos municípios, a exemplo de Bagé (RS), tem sido paulatinamente legalizada através da concessão de uso para fins de moradia, regulamentada pela Medida Provisória 2.220, de 4.9.2001, já que os artigos 15 a 20 do Estatuto da Cidade, que continham previsão semelhante, foram vetados. Vale salientar, que as citadas concessões foram permitidas a partir de critérios, tais como:

"Art. 1o Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o A concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma gratuita ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2o O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo
concessionário mais de uma vez.
§ 3o Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, na posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.

O veto aos artigos que tratavam da concessão de uso, dentro do Estatuto da Cidade, ocorreu diante da ausência, dentre outros motivos, de uma data-limite para aquisição do direito, qual seja, até 30 de junho de 2001. Outrossim, o referido capítulo legal continha previsão de concessão em "edificação pública", além da ausência de ressalvas a determinadas áreas urbanas, como as destinadas à defesa nacional, obras públicas, ou, ainda, preservação ambiental.

Necessário, frisar, nos termos do parágrafo 3.º do art. 183 da Constituição Federal, que a concessão de uso não outorga o domínio do imóvel ao possuidor, uma vez que "os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião" (§ 3.º).

6 CONCLUSÃO

Segundo Paulo Affonso Leme Machado, renomado ambientalista, "A existência do ser humano, por si só, garante-lhe o direito de consumir água ou ar. O direito à vida antecede os outros direitos".

O Estado Democrático de Direito exige atuação pró-ativa do Poder Público, a qual, em linguagem jurídica, poderíamos conceituar como um facere atinente ao Estado.

Balizados os direitos fundamentais, o acesso à água potável, como direito de sexta dimensão, merece destaque na pauta das políticas públicas, posto que direito primário, de sensível interdependência aos demais direitos gestados constitucionalmente.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Alexandre Rossato. Curso de Direito Tributário. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2005.

BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

DALLARI, Adilson Abreu. FERRAZ, Sérgio (coord.).Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2002.
FACHIN, Zulmar. Acesso à Água Potável. São Paulo: Millennium, 2010, p. 74

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.
Cad. Saúde Pública v.20 n.5 Rio de Janeiro set./out. 2004set. 1998. Disponível em:
<http://www.providafamilia.org/pena_morte_nascituro.htm>. Acesso em: 17 jan. 2001.
MORAES, Guilherme Peña. Curso de Direito Constitucional. 8ª Ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 581.

Última modificação em Terça, 09 Agosto 2016 17:24
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