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14 de Setembro, 2020

Estratégias comerciais em saneamento

Estratégias comerciais em saneamento

Professor destaca o conflito de interesse entre investidores e usuários nos casos em que há influência do capital privado.

Ao analisar a experiência da Sabesp, o professor Alberto de Oliveira (UFRJ) destaca o conflito de interesses entre investidores e usuários dos serviços de saneamento, nos casos em que há influência do capital privado. Leia na íntegra abaixo: 

Estratégias comerciais e operacionais das grandes companhias de saneamento: a experiência do Estado de São Paulo

Autor: Alberto de Oliveira - Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Resumo

O final do século XX testemunhou a ascensão de modelos de política pública baseados em soluções de mercado, o que estimulou a privatização e o surgimento de parcerias público-privadas no setor de saneamento básico. O objetivo deste trabalho é avaliar as estratégias comerciais e operacionais adotadas pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), tendo em vista as transformações em curso no mercado internacional, a fim de juntar elementos que contribuam para o debate das políticas de saneamento no Brasil. A metodologia do trabalho buscou identificar convergências e divergências entre os interesses dos investidores e dos usuários, a partir da análise das informações econômicas e operacionais disponíveis nos relatórios dos acionistas, com destaque para os seguintes aspectos: recursos humanos, investimentos, tarifas, eficiência operacional e lucratividade. A investigação concluiu que a Sabesp vem seguindo estratégias semelhantes às observadas nas companhias que atuam no mercado internacional, embora tenha divergido em alguns aspectos, possivelmente em razão das características da infraestrutura de saneamento presentes em São Paulo. Finalmente, em oposição à harmonia preconizada nos textos que defendem as soluções de mercado, esta pesquisa apontou nas estratégias da Sabesp os conflitos entre os interesses de investidores e usuários.

Introdução

O último quartel do século XX assistiu ao surgimento de um novo regime de acumulação capitalista que alterou o papel do Estado, gerando desdobramentos sobre o provimento de serviços públicos, como o saneamento básico. A compreensão dos efeitos dessa nova dinâmica sobre a população passa pela investigação das estratégias adotadas pelas grandes companhias que atuam no provimento de serviços públicos essenciais.

O objetivo deste trabalho é avaliar as estratégias comerciais e operacionais adotadas pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), tomando como referência as transformações em curso no mercado internacional de saneamento, particularmente as experiências da França e do Reino Unido, cujos processos de privatização serviram de referência para as práticas observadas na atualidade, – a fim de contribuir no debate sobre o acesso das famílias de baixa renda aos serviços de saneamento.

Em termos metodológicos, o trabalho está baseado na análise de informações financeiras e operacionais disponíveis nos relatórios enviados pela Sabesp à Securities and Exchange Commission (SEC), em atendimento à legislação que regula as empresas de capital aberto que atuam nos Estados Unidos. A análise considerou os seguintes aspectos: (a) política de mão de obra; (b) estratégias comerciais e novas linhas de negócios; (c) direcionamento dos investimentos, evolução da lucratividade e política de distribuição de dividendos; (d) eficiência dos serviços prestados; (e) e tarifas. Ou seja, o trabalho buscou investigar aspectos que pudessem indicar a existência (ou não) de divergências entre os interesses dos investidores e o atendimento da população.

A Sabesp foi selecionada para este estudo em razão do expressivo número de usuários e do longo período de participação do capital privado nas operações da empresa. A abertura do capital ocorreu em 1997, no mercado nacional e, em 2002, no exterior. A análise se limita ao período pós-2000, em razão da disponibilidade dos referidos relatórios. Deste modo, entende-se que a análise das decisões da Sabesp pode servir como referência para a investigação das demais companhias de saneamento que atuam no país.

A investigação da Sabesp foi precedida por revisão de literatura sobre as transformações em curso no mercado mundial de saneamento, de forma a orientar a seleção e o tratamento dos dados estatísticos, bem como para identificar os aspectos que mereceriam maior atenção. Portanto, a discussão teórica presente neste texto não pretende esgotar ou sintetizar os debates em curso nesse campo do conhecimento, mas, apenas, servir de guia para a leitura dos dados da empresa.

O trabalho está organizado em três partes, além desta introdução. A primeira mostra as transformações em curso no mercado internacional de saneamento básico, destacando o papel desempenhado pelo Estado e as estratégias adotadas pelas empresas privadas, bem como a experiência observada na França e no Reino Unido. A segunda parte analisa os dados financeiros e operacionais da Sabesp, de forma a identificar as estratégias e prioridades adotadas pela empresa. A título de conclusão, a última parte destaca as diferenças e semelhanças entre as estratégias adotadas pela Sabesp e as tendências observadas nos países industrializados.

O papel do Estado e as estratégias adotadas pelas companhias de saneamento

A partir da óptica da atuação do Estado e de sua relação com o capital privado, a evolução do setor de saneamento apresentou três fases distintas: (i) nos primórdios da implantação desses serviços, o processo foi conduzido pelo capital privado e caracterizado pela fragmentação geográfica e pela disparidade da qualidade dos serviços; (ii) na fase seguinte, que vigorou durante o regime Fordista-keynesiano e num contexto de consolidação das políticas de bem-estar social, o saneamento passou a ser entendido como responsabilidade do Estado e como parte da política de saúde pública, levando o Estado a empenhar esforços para garantir a universalização e a padronização desses serviços ( Swyngedouw, 2006 ). A terceira fase tem início no último quartel do século XX quando, na visão de Jessop (1993) , o regime de acumulação Fordista-keynesiano foi substituído pelo Schumpeterian workfare state , cujo foco está nos negócios privados e na construção de estruturas competitivas nas cidades, países etc.

Ainda que as políticas de intervenção do Estado na economia e nas relações entre indivíduos tenham ganhado impulso no final do século XIX, com a criação de aparatos de seguridade social, foi somente com a consolidação do regime fordista-keynesiano que o Estado passou a ocupar o centro da atividade econômica. Destaque-se que os danos causados pela depressão econômica nos Estados Unidos e pelas guerras mundiais, além das pressões exercidas pelos acontecimentos na União Soviética, estimularam a ampliação das políticas sociais nos países ocidentais. Diante desse contexto, Reis (2004) afirma que o Estado assumiu tarefas de coordenação econômica e de redistribuição da riqueza, que se desdobraram em três funções: (i) financiador (infraestrutura, empresas, habitação etc.); (ii) provedor de serviços públicos; e (iii) regulador da economia.

No último quartel do século XX, as funções do Estado (financiamento, provimento e regulação) vêm sendo reconceituadas e adaptadas para atender os princípios do Schumpeterian workforce estate . Para Rosenau (2000) , a condição monopolista do Estado torna o provimento de serviços públicos ineficiente e burocrático, daí a necessidade de introduzir soluções de mercado para reduzir os custos e elevar a qualidade desses serviços. Chenoweth (2004) argumenta que a privatização do saneamento avançou com mais rapidez nos países desenvolvidos, visto que os países subdesenvolvidos apresentavam obstáculos como as limitações dos mercados, as restrições técnicas e a oposição de grupos de interesse. De acordo com Hall e Lobina (2007) , a abertura de novos mercados contou com o apoio decisivo dos bancos multilaterais de desenvolvimento (Banco Mundial, Banco de Investimento Europeu etc.), que vinculavam a liberação de recursos ao estabelecimento de parcerias privadas.

Em suma, é importante reter que as novas formas de provimento de saneamento emergiram das alterações no regime de acumulação do capitalismo, que se desdobraram em novas políticas macroeconômicas e na redefinição do papel do Estado. Nesse novo regime, a noção de solidariedade foi substituída pela busca da eficiência e da competitividade. Para entender as consequências dessas mudanças sobre a população, faz-se necessário revisitar as privatizações do Reino Unido e da França, pois, desses processos, emergiram as grandes companhias que atuam no mercado global de saneamento.

Nos anos 1970, o fragmentado sistema de saneamento do Reino Unido foi reorganizado em unidades regionais, de maneira a viabilizar a privatização. Contudo, a entrada do capital privado alterou o papel do saneamento na política pública. Até 1974, as famílias de baixa renda contavam com subsídios nos serviços de saneamento, pois estes eram classificados como políticas de saúde pública. Após a privatização, as tarifas de água aumentaram 46%, e a taxa de retorno sobre o capital das empresas de saneamento alcançou 23% no Reino Unido. A título de comparação, a taxa de retorno sobre o capital das empresas de saneamento na Suécia era apenas 8% ( Bakker, 2003 ). Como resultado, a privatização do saneamento excluiu parte das famílias de baixa renda do sistema. Apenas entre 1991 e 1992, o número de desconexões da rede de saneamento do Reino Unido aumentou 177%. Graham e Marvin (1994) sugerem que o aumento das desconexões pode estar relacionado com o aumento dos casos de disenteria e hepatite no Reino Unido, no período.

Dore et al. (2004) explicam que o sistema de saneamento francês é centralizado, politizado e insulado por forças de mercado, em razão da manutenção de elevados subsídios concedidos após a privatização. Ainda de acordo com Dore, cerca de 70% dos investimentos em saneamento eram financiados com recursos públicos, no início da década de 2000. Além disso, o fechamento do mercado de saneamento francês para as empresas estrangeiras levou à centralização do capital em grandes companhias (privadas) nacionais, o que contraria os princípios de competição e eficiência alardeados pela ortodoxia econômica. As tarifas de saneamento apresentaram crescimento expressivo após a privatização. Em meados dos anos 1990, Buller (1996, apud Dore et al. , 2004) estimou que as tarifas de saneamento das empresas privatizadas eram 40% mais elevadas em comparação com as tarifas praticadas antes da privatização. Apenas no intervalo entre 1994 e 1999, o valor médio das tarifas (para a franquia de 120m3 de água) cresceu 21,3%, passando de 1689 para 2049 francos franceses (Dore et al ., 2004, p. 48).

As companhias de saneamento da França e do Reino Unido redirecionaram receitas obtidas nas áreas originais de concessão em favor de investimentos em outras atividades ou espaços geográficos, muitas deles além das respectivas fronteiras internacionais, num movimento que ficou conhecido como “ cherry picking ” ( Graham e Marvin, 1994 ). As transformações na economia mundial, somadas à desintegração da União Soviética, criaram mercados atrativos para as companhias de saneamento. No entanto, diferenças nos contextos internos da França e do Reino Unido também estimularam os investimentos no exterior. Graham e Marvin (1994) mostraram que, na França, a centralização do capital e o domínio do mercado interno permitiram que as companhias francesas investissem na captura de novos mercados europeus. Já no Reino Unido, o aparato regulador implantado após a privatização limitou (mas não impediu) as possibilidades de expansão da lucratividade nas áreas originais de concessão, o que levou as companhias britânicas a buscarem novos mercados e áreas de negócios.

Swyngedouw resume as consequências derivadas do novo modelo de negócios das companhias de saneamento, ao afirmar que: “[…] as prestadoras de serviços públicos ‘promissoras’ (em termos de perspectivas de obtenção de lucros) são privatizadas, enquanto as prestadoras menores e, geralmente, menos lucrativas permanecem nas mãos do setor público e requerem contínuos subsídios (Swyngedouw, 2006, p. 56)”1 .

Finalmente, é preciso reconhecer que a qualidade dos serviços de saneamento melhorou após a privatização, tanto na França, quanto no Reino Unido. Entretanto, Dore et al. (2004) afirmam que a melhoria dos serviços de saneamento no Reino Unido não decorreu da competição do mercado, mas da criação do Water Services Regulation Autority (Ofwat) , nos anos 1980. Na França, os autores argumentam que as exigências da União Européia quanto à padronização dos serviços de saneamento foram utilizadas como justificativa para a concessão desses serviços ao setor privado.

Portanto, a adoção de soluções de mercado para o provimento de saneamento estimulou o redirecionamento de recursos para as atividades comerciais e os recortes geográficos mais lucrativos, embora não tenha eliminado a necessidade de subsídios públicos, principalmente para atender as áreas ou atividades comercialmente deficitárias. Esse novo modelo de gestão gerou rebatimentos sobre os princípios de repartição social dos custos de construção e manutenção da infraestrutura de saneamento.

Na fase fordista-keynesiana, os investimentos em saneamento eram financiados majoritariamente por meio da expansão da dívida pública, visto que o Estado não repassava integralmente os custos de financiamento para as tarifas. Embora houvesse limitações nos mecanismos de controle e transparência, as decisões governamentais sobre o montante e o direcionamento dos subsídios podiam ser questionadas pela população, pelo menos, durante as consultas eleitorais. A incorporação do setor privado nos serviços públicos trouxe novos princípios de financiamento e de repartição de obrigações entre os usuários. Como os contratos de concessão de serviços públicos são de longa duração, os governos sucessores devem arcar com os custos e as responsabilidades definidas nos acordos estabelecidos entre o governo corrente e o capital privado. Como a margem para a repactuação desses contratos é estreita, as decisões tomadas no presente sobre a distribuição dos custos e dos benefícios dos serviços prestados à população têm um forte componente inercial.

Os defensores da gestão privada do saneamento advogam que os custos de construção e de operação devem ser integralmente transferidos para os usuários. Rogers et al . (2002) argumentam que as tarifas devem refletir os custos reais dos serviços prestados ( total recovery cost model ), de modo a distribuir – de forma socialmente justa, na visão desses autores – o ônus desses serviços. Em outra vertente narrativa, Helm (2015) apela para os princípios de responsabilidade e sustentabilidade intergeracional para defender a redistribuição dos gastos com saneamento.

Cumpre lembrar que a defesa da privatização do saneamento está baseada na promessa de redução dos gastos públicos. Para cumprir essa promessa, as companhias privatizadas devem buscar financiamento no mercado privado. Porém, os investidores que financiam as companhias de saneamento exigem garantias e rentabilidade compatíveis com os riscos do negócio. Assim, as companhias privatizadas de saneamento demandam do Estado regulação transparente, estável e (preferencialmente) amigável para garantir a realização de investimentos. Novamente, essa engenharia financeira reforça a elevação das tarifas e a exclusão dos usuários de baixa renda. Para contornar esse efeito social nocivo, os adeptos do modelo privado de gestão do saneamento argumentam que o Estado deve oferecer programas de subsídios focados na população de baixa renda (sobre políticas de transferência de renda e assemelhados, ver Gómez-Lobo e Contreras, 2003). Portanto, o argumento de que a privatização reduz os gastos públicos somente se sustenta se o montante destinado aos subsídios para as famílias de baixa renda for menor que os gastos do Estado para gerir diretamente o provimento de serviços públicos.

Os investimentos em infraestrutura envolvem elevados riscos em razão do expressivo montante de capital requerido e dos dilatados prazos de maturação. Para contornar esses obstáculos, foram desenvolvidos instrumentos como o project finance , que é um arranjo jurídico-financeiro que articula a participação de diferentes agentes (investidores, construtoras, Estado etc.) a fim de estabelecer a interdependência dos participantes, distribuir responsabilidades e diluir os riscos. Usualmente, esses arranjos utilizam o capital imobilizado e os recebíveis da empresa como lastro para a emissão de títulos que serão negociados no mercado (sobre project finance , ver Borges, 1998 ; Ferreira, 1995 ; e Silva Filho, 2014).

No desenho do project finance , a principal função do Estado é oferecer uma rede de proteção para os investidores privados. Para isso, o Estado mobiliza um ou mais dos seguintes instrumentos: (i) oferece garantias de rentabilidade/receita mínima para o operador do projeto; (ii) participa como investidor direto em fases de elevado risco; (iii) define regulamentação ou legislação apropriada para garantir o equilíbrio financeiro do projeto; (iv) atua como avalista para empréstimos de empresas privadas; (v) transfere bens ou direitos públicos para empresas privadas, de forma a reduzir os custos do projeto; (vi) concede financiamento subsidiado. Portanto, o equilíbrio financeiro e a lucratividade das companhias privadas de saneamento não refletem exclusivamente os méritos da gestão privada, pois o Estado define o desempenho do empreendimento ao ofertar crédito barato, arcar com parte dos riscos e prover regulação amigável.

Finalmente, Hall (2015) argumenta que as PPP prejudicam os trabalhadores das concessionárias de serviços públicos, na medida em que os gastos com mão de obra serão reduzidos para reforçar a lucratividade. A precarização do trabalho resulta da proliferação da terceirização da mão de obra. Além disso, o enfraquecimento dos sindicatos diminui a capacidade de reação desses trabalhadores.

Em suma, a adoção de soluções de mercado tende a fragmentar a prestação de serviços (em áreas/atividades lucrativas e não lucrativas) e elevar as tarifas de saneamento. A despeito dos argumentos dos defensores do mercado, o Estado continua ocupando posição chave, seja por meio do suporte às operações privadas, seja pela promoção de programas de subsídio para os usuários de baixa renda. A internacionalização dos investidores e dos arranjos jurídicos-finaceiros tende a padronizar o modus operandi das grandes companhias de saneamento. Portanto, a identificação de semelhanças e diferenças entre as estratégias adotadas pela Sabesp e a experiência observada nos países desenvolvidos pode contribuir para a compreensão dos processos em curso no Brasil.

A evolução e as estratégias da Sabesp no Estado de São Paulo

A Sabesp foi criada em 1973 no contexto da implantação do Plano Nacional de Saneamento (Planasa), que, por meio das pressões exercidas pelo governo militar, logrou centralizar os serviços de saneamento nas companhias estaduais. Em 2016, a Sabesp atendeu cerca de 25 milhões de pessoas, o que lhe confere o terceiro lugar no ranking mundial de companhias de saneamento em termos de receita anual e de número de usuários ( Bluefield Research, 2013 ).

A abertura do capital da Sabesp ocorreu em junho de 1997, quando 4% do capital da empresa foram vendidos na Bolsa de Valores de São Paulo. Em 2002, foram emitidos ADR ( American Depositary Receipt ), por meio dos quais as ações da empresa são negociadas na Bolsa de Valores de New York. Atualmente, o governo do Estado de São Paulo é o acionista controlador da Sabesp, pois detém 50,3% das ações da companhia. Os ADR totalizam 25% do capital, enquanto o percentual remanescente é na bolsa de valores brasileira. Dentre os acionistas privados, destaca-se a participação da gestora Lazard Asset, subsidiária do banco de investimentos americano de mesmo nome que, em abril de 2018, alcançou participação correspondente a 5,1% do capital da empresa.

O governo do Estado de São Paulo pretende abrir mão do controle acionário da Sabesp, uma vez que a Lei n.16525/17, sancionada em setembro de 2017, autorizou a criação de uma companhia controladora que deterá a totalidade das ações da empresa que pertencem ao governo estadual. O relatório da Sabesp enviado à SEC (Sabesp, 2017) informa que, em março de 2018, a Sabesp recebeu carta de investidores manifestando interesse pelas ações da companhia controladora, entretanto a identidade dos investidores permanece confidencial.

A abertura do capital da Sabesp foi realizada com a promessa de ampliar a qualidade dos serviços prestados e reduzir a ingerência política na empresa, por meio da atração do capital privado. Durante o debate eleitoral de 1998, o candidato e governador de São Paulo, Mário Covas, afirmou em entrevista ao programa Roda Viva (TV Cultura): “[…] nós estamos pensando em arranjar um sócio privilegiado [para a Sabesp] que, com 5% do capital, tenha garantia de, por exemplo, ter o cargo de diretor financeiro. E, portanto, isso garante a não ingerência política dentro da empresa” (Projeto Memória Roda Viva, 1998, p. 4).

A mudança na composição acionária da Sabesp seguiu os padrões observados nas privatizações ocorridas nos anos 1990. A venda das ações da empresa foi precedida de forte recomposição de tarifas e da transferência de passivos ou atividades deficitárias para a responsabilidade do Estado. Com essas medidas, os ganhos financeiros foram expressivos após a privatização. O prejuízo de 2,8% registrado em 1994 foi substituído pelo lucro de 5,7% em 1997, o que colocou a Sabesp entre as cinco empresas mais lucrativas do país (Santana, 1998 ).

O mercado respondeu positivamente às mudanças adotadas pelo governo paulista, uma vez que o preço do lote de ações da Sabesp saltou de R$ 40,00 para R$ 305,00, entre novembro de 1996 e junho de 1997 ( Gamez, 1997 ). Nas palavras de Gamez (1997 , p. 1): “menos de vinte minutos após o início dos negócios na Bovespa, na quarta-feira, o governador Mário Covas jogou mel na boca dos investidores. Anunciou um aumento nas tarifas da Sabesp (9,8%) a partir do dia seguinte e revelou a futura colocação no mercado de até R$ 300 milhões em novas ações da companhia. Contou, ainda, que prepara a entrada de um sócio estratégico na empresa – mais ou menos como fez o governo mineiro com a Cemig”.

Para compreender as estratégias adotadas pela Sabesp, é preciso refletir sobre as medidas que vêm sendo tomadas para aumentar as receitas e reduzir as despesas da empresa. Alguns aspectos que afetam o desempenho dos negócios não estão sob controle da empresa, como é o caso dos preços da energia elétrica e da carga tributária, entre outros. Portanto, a análise estará focada nos elementos que podem ser manejados pela empresa, como o direcionamento dos investimentos, as estratégias comerciais, a busca de novos segmentos de negócios, o aumento da eficiência das operações e a política de mão de obra. A evolução e a composição das tarifas também serão analisadas, embora não dependam, exclusivamente, das decisões da empresa.

Gestão de mão de obra

No tocante à gestão de mão de obra, a Sabesp vem buscando reduzir os gastos com folha de pagamento por meio da redução do quadro permanente da empresa e da expansão dos serviços terceirizados, além de adotar medidas de simplificação ou aprimoramento de rotinas administrativas e operacionais. Ainda durante a reestruturação pré-abertura de capital (1995-1996), o governo paulista cortou cerca de 3 mil postos de trabalho na Sabesp (Folha de S.Paulo, 1996). Com a incorporação do capital privado, o contingente de empregados manteve trajetória de declínio.

Embora este trabalho não disponha de dados quantitativos para aferir os impactos da política de recursos humanos da Sabesp sobre a qualidade dos serviços prestados, é possível afirmar que o avanço da terceirização na Sabesp chamou a atenção do Ministério Público do Trabalho (MPT). Em 2010, o MPT de São Paulo abriu ação civil pública para investigar irregularidades na terceirização de funcionários da empresa. De acordo com Leite (2015) , o MPT concluiu – a partir de relatos de técnicos da empresa e de representantes do Sindicato de Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente (Sintaema) – que a terceirização ilegal interferiu na qualidade dos serviços prestados à população.

Ainda sobre a questão dos custos de mão de obra, a responsabilidade sobre parte do passivo do plano de previdência dos funcionários da Sabesp foi transferida para o Estado de São Paulo. Em 2001, o governo paulista buscou quitar os débitos da previdência (e de contas devidas por empresas públicas) por meio da transferência da propriedade dos reservatórios de Taiaçupeba, Jundiaí, Biritiba, Paraitinga e Ponte Nova para a Sabesp. O acordo foi contestado pelo Ministério Público e, desde então, o governo vem negociando alternativas para o equacionamento dessas dívidas (Sabesp, 2017, p. 234).

Estratégias comerciais e novas linhas de negócios

A principal fonte de recursos da Sabesp é a prestação de serviços de água e esgoto para os municípios do Estado de São Paulo e, particularmente, para a Região Metropolitana de São Paulo. De acordo com os relatórios enviados aos acionistas (Sabesp, 2017), cerca de 75% das receitas da empresa provêm dos serviços prestados na Região Metropolitana de São Paulo. Portanto, a renovação e a ampliação dos contratos com as cidades localizadas nas franjas da área de influência da Sabesp estão entre as prioridades da empresa. Entre 1997 e 2004, foram obtidas 34 novas concessões municipais para a prestação de serviços de saneamento ( Sabesp, 2004 , p. 36). O relatório de 2017 ( Sabesp, 2017 , p. 39) menciona que 287 contratos de prestação de serviços foram firmados com municípios paulistas, entre 2007 e 2017. O relatório não distingue as renovações contratuais das novas concessões, contudo, diante da consolidação da atuação da Sabesp em São Paulo, é possível supor que a maioria desses contratos seja de renovação ou regularização das concessões já atendidas pela empresa.

A Sabesp vem buscando diversificar suas linhas de negócios. A partir de 2008, a Sabesp fechou contratos de consultoria e desenvolvimento de sistemas em diferentes municípios brasileiros e estrangeiros . As receitas obtidas nesses serviços ainda são pequenas em comparação com a operação dos sistemas de água e esgoto em São Paulo, embora ofereça pistas sobre as estratégias mercadológicas da empresa.

A Sabesp também fechou parcerias com empresas privadas para oferecer serviços de água e esgoto. Por meio de Sociedades de Propósito Específico (SPE), a empresa firmou contratos de serviços de saneamento com os municípios de Mogi-Mirim, Castilho, Andradina e Mairinque.

Quanto ao provimento de serviços de água e esgoto para os municípios paulistas, as informações obtidas nos relatórios da Sabesp enviados à SEC sugerem que a Sabesp atuou mais intensamente na expansão na rede de distribuição do que na produção de água, o que pode ter agravado a crise hídrica de 2014. Nas palavras de Cerqueira Neto, “[…] faltaram investimentos em novos mananciais. Se no passado esses recursos tivessem sido alocados, de forma a superar as variações do ciclo hídrico, certamente estaríamos passando por essa crise com folga” (Cerqueira Neto apudBarrucho, 2014 ). Para mais informações sobre a crise hídrica de São Paulo, ver Neto (2016) .

Entre 2000 e 2017, o volume de água produzido por número de ligações declinou 35,1%, passando de 484 m3 para 314 m3( Tabela 2 ). Em outras palavras, enquanto o número de ligações de água aumentou 60,1%, o volume de água produzido cresceu 3,9%. O recorde na produção de água foi alcançado em 2012, quando a empresa produziu 3,1 bilhões de m3. Tal produção correspondeu a um acréscimo de 14,2% em relação a 2000, porém esse crescimento ficou abaixo da expansão do número de ligações, que foi 38,7%, entre 2000 e 2012.

O descompasso entre os ritmos de crescimento da produção de água e da rede de distribuição pode estar relacionado à estratégia de negócios da empresa, visto que a expansão da rede tende a gerar retornos sobre a receita maiores e em menor prazo, em comparação com o aumento da oferta de água. No entanto, é preciso ponderar outros aspectos que pesaram nas decisões dos negócios da empresa, como os esforços de expansão da coleta e tratamento de esgotos, como se verá na discussão a seguir sobre os investimentos da empresa.

Investimentos, financiamento, lucros e dividendos

A estratégia de investimentos da empresa variou ao longo do período analisado. O crescimento expressivo das redes de água e esgoto mostra que a empresa priorizou a expansão da malha de distribuição. De outro lado, os relatórios enviados à SEC informam que a empresa investiu R$ 3,2 bilhões, entre 2009 e 2016, para reduzir as perdas de água, embora a Tabela 4 mostre que os níveis de perda de água se mantiveram elevados (dados sobre eficiência serão discutidos no item “d” deste documento, a seguir). Investimentos importantes também foram realizados em tratamento de esgoto, principalmente a partir de 2006. Os relatórios enviados à SEC mostram que o número de estações de tratamento de esgotos aumentou de 417 para 548, entre 2002 e 2017. No mesmo período, a porcentagem de esgoto tratado em relação ao coletado passou de 63% para 75%.

Destaque-se que, a partir de 2008, os investimentos da Sabesp apresentaram crescimento expressivo em razão da expansão da oferta de crédito governamental. Em 2007, o lançamento do Plano Nacional de Saneamento foi acompanhado pelo Programa de Aceleração de Investimentos (PAC), que injetou mais de R$ 600 bilhões em obras de saneamento em todo o país. Assim, a comparação dos intervalos 2000/2007 e 2008/2017 mostra que o investimento médio anual da Sabesp cresceu 120,2%, passando de R$ 1.569 milhões para 3.456 milhões. Entre os mesmos intervalos, a média dos lucros anuais saltou 199,8%, de R$ 689 milhões para R$ 2.067 milhões.

Os bancos estatais e as agências multilaterais continuaram sendo as principais fontes de financiamento para os investimentos da Sabesp desde a abertura de capital, no final dos anos 1990. Embora a captação de recursos no mercado de capitais tenha apresentado uma pequena expansão ao longo do período analisado, entre 2001 e 2017, a porcentagem da dívida com a emissão de debêntures e eurobônus – em relação à dívida total da empresa – passou de 30,7% para 38,4%, respectivamente. No mesmo período, a participação dos bancos públicos (CEF e BNDES) e das agências multilaterais (BID, Bird, Jica etc.) declinou de 68,9% para 55,8%. Portanto, a Tabela 4 mostra que a redução do endividamento em fontes oficiais e multilaterais foi contrabalançada pelo crescimento da captação no mercado de capitais e pela maior utilização de outros instrumentos, como o arrendamento financeiro.

Os relatórios enviados à SEC mostram que importantes investimentos para a expansão da oferta de água foram realizados a partir de 2014. Alguns projetos foram iniciados em caráter emergencial, em decorrência da crise hídrica. O Quadro 2 mostra que a transposição do Rio Itapanhaú, a integração dos reservatórios Jaguari-Atibaínha e o Projeto São Lourenço devem elevar em cerca de 16 m3/s a disponibilidade de água para a Região Metropolitana de São Paulo. Ações semelhantes foram observadas apenas em 2006, quando a segunda fase do Programa Metropolitano de Água buscou ampliar em 8 m3/s a disponibilidade de água na região. Programas de redução de perdas e recuperação de mananciais foram iniciados em 2009, enquanto ações de expansão de água no Litoral ocorreram em 2013. Dentre os projetos de coleta e tratamento de esgoto destaca-se o Projeto Tietê, que vem sendo desenvolvido desde 1992. Projetos no litoral foram iniciados em 2007, possivelmente em resposta ao Plano Nacional de Saneamento.

Neto, tratando da crise hídrica de 2014/15, afirmou que “[…] a partir de 1990, a Sabesp substituiu a saúde pública pelo lucro e os usuários de seus serviços por seus acionistas, com a proteção do governo do estado, que, como acionista majoritário, passou a ‘ficar de olho’ nos 51% da sua parte nos dividendos – R$ 250 milhões por ano, ou R$ 1 bilhão em quatro anos de mandato” (Neto, 2016 , p. 481). Os relatórios enviados à SEC mostram que, na comparação entre os períodos 2000/2007 versus 2008/2017, a média de distribuição de dividendos variou inversamente ao montante de investimentos: -23,5% e +120,2%, respectivamente. O relatório de 2002 (Sabesp, 2002) explica que parte dos dividendos devidos ao governo estadual foi usada para abater débitos remanescentes do processo de abertura de capital. Parcela desses débitos deve-se ao fundo de pensão dos funcionários (que foi assumido pelo governo estadual), além de contas em aberto de água e esgoto devidas pelos órgãos da administração estadual. A questão do passivo do governo estadual com a Sabesp está presente em outros relatórios da empresa (de 2000 a 2017) e foi objeto de diferentes acordos que os envolveram, dentre os quais a transferência de patrimônio público para a Sabesp, como mencionado no item “a” deste documento (Gestão de mão de obra).

Entre 2000 e 2017, a soma da distribuição de dividendos alcançou cerca de R$ 12 bilhões, valor que corresponde a 27% do total dos investimentos registrados no período. De fato, caso não houvesse a abertura de capital, os recursos despendidos com dividendos para os acionistas privados poderiam reforçar os investimentos da empresa e, portanto, beneficiar a população. Contudo, os dividendos recebidos pelo Governo do Estado de São Paulo se mantiveram na esfera do setor público. Assim, o questionamento sobre os usos dos recursos públicos não pode estar limitado aos dividendos recebidos da Sabesp, pois reflete as escolhas feitas pelas diferentes administrações do Estado de São Paulo e por seus eleitores.

Eficiência dos serviços prestados

Do ponto de vista da eficiência dos serviços de saneamento, os relatórios da Sabesp enviados à SEC mostram que não houve mudança significativa no nível de perda de água desde o início dos anos 2000, visto que o índice de perda de água medido (IPA)2 manteve-se acima de 30%, exceto para os anos de 2007, 2014 e 2015. Os melhores resultados foram obtidos, em 2015, durante a crise hídrica, quando a empresa reduziu a pressão no sistema de distribuição a fim de reduzir as perdas de água.

Tarifas

Outro aspecto que afeta, significativamente, o comportamento do faturamento das companhias de saneamento é o desenho e o regime de correção de tarifas. O sistema tarifário da Sabesp estabelece valores diferenciados para usuários residenciais e não residenciais. Entre os não residenciais, a empresa oferece benefícios para os grandes consumidores. Já entre os usuários residenciais, as famílias de baixa renda e os residentes em áreas de favela contam com tarifas abaixo do valor padrão. Em 2017, a tarifa padrão para residências (faixa de 11 a 20 m3/mês) alcançou R$ 3,78, enquanto as famílias de baixa e as unidades localizadas em favelas pagavam R$ 1,41 e R$ 0,71, respectivamente ( Sabesp, 2017 , p. 66).

A despeito das diferenças nas tarifas entre usuários, que beneficiam as famílias de baixa renda, é possível observar que a tarifa média da Sabesp apresentou crescimento expressivo após a abertura do capital da empresa. Tomando como referência o mês de julho de 2000 (base: julho de 2000 = 100), a Tabela 6 mostra que o número índice das tarifas cresceu de 100,0 para 378,8, enquanto o indicador equivalente para a inflação (medida pelo INPC) passou de 100,0 para 313,3. Ou seja, os reajustes nas tarifas superaram a inflação acumulada entre os anos de 2000 e 2018.

Para o período pós-2015, parte do reajuste das tarifas foi justificada para recompor as perdas advindas da crise hídrica. O racionamento de água e o oferecimento de descontos nas tarifas para incentivar a redução no consumo de água diminuíram o faturamento. Em resposta, a Sabesp requereu da Arsesp autorização para o estabelecimento de reajuste complementar com o objetivo de restabelecer o equilíbrio financeiro da empresa ( El País Brasil, 2015 )

Desde o início dos anos 2000, a Sabesp realizou mudanças na metodologia de cálculo de correção das tarifas. Em 2003, a empresa adotou método de reajuste que separava os custos em duas partes: “A” e “B”. A parte “A” correspondia aos gastos com energia elétrica, materiais para tratamento de água e esgotos, impostos e a compensação financeira relativa ao uso de recursos hídricos. A parte “B” era composta pela diferença entre a receita operacional bruta e os valores apurados na parte “A”. O reajuste da parte “A” baseava-se na variação dos custos efetivos dos componentes desse grupo, enquanto a correção da parte “B” era calculada a partir do IPCA. Esse modelo de reajuste vigorou até o início da década de 2010, quando a Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp) definiu nova sistemática de reajuste de tarifas que incluía, entre outros elementos, os ganhos de produtividade obtidos pela empresa.

O conjunto de indicadores econômicos e operacionais da Sabesp mostrou convergências e divergências em relação ao observado nos países europeus. Lembrando que este trabalho não pretende comparar a performance econômica da empresa brasileira vis-à-vis às congêneres europeias, as conclusões, indicadas a seguir, buscarão interpretar os caminhos trilhados pela Sabesp à luz das recentes transformações na indústria mundial de saneamento.

Conclusão

A crise hídrica de 2014/2015 trouxe a luz o debate sobre a política de saneamento básico no país. Assim, o objetivo deste trabalho foi compreender as estratégias comerciais, financeiras e operacionais das companhias de saneamento básico sob a influência do capital privado, tendo como pano de fundo o cenário internacional, a fim de contribuir para as discussões sobre as transformações em curso no setor de saneamento no Brasil. Nesse sentido, as decisões tomadas pela Sabesp podem servir como referência para o entendimento das ações tomadas pelas demais companhias de saneamento que atuam no país.

Ancorado nas informações estatísticas detalhadas disponíveis nos relatórios enviados pela Sabesp à SEC, este trabalho identificou algumas estratégias adotadas pela empresa que convergiram (e outras que divergiram) da experiência internacional, as quais são resumidas a seguir:

À semelhança do observado em outros países, a abertura do capital da Sabesp foi acompanhada pelo declínio e pela precarização de sua força de trabalho. Os dados disponíveis nessa pesquisa são insuficientes para averiguar se a política de mão de obra adotada pela empresa afetou negativamente a prestação de serviços. Contudo, questionamentos levantados por engenheiros e pelos sindicalistas mobilizaram o interesse dos procuradores do trabalho do Estado de São Paulo, que abriram procedimento para investigar as denúncias.

À semelhança do observado em outros países, a Sabesp buscou diversificar suas linhas de negócios. Porém, a participação percentual das receitas obtidas com essas novas atividades ainda é relativamente pequena em comparação com o total do faturamento da empresa.

Diferente do observado nos países centrais, a infraestrutura de saneamento no Brasil ainda é bastante incompleta (mesmo em São Paulo), notadamente no que tange à coleta e ao tratamento de esgoto. Tal característica abre oportunidades de mercado, o que pode explicar a baixa participação percentual dos novos negócios no faturamento da Sabesp e o esforço da empresa para consolidar, por meio da renovação dos contratos de programa, a prestação de serviços no território paulista.

Tal como registrado em outros países, a incorporação do capital privado na Sabesp foi acompanhada pelo aumento expressivo das tarifas. Parte desse aumento aconteceu ainda no período de preparação da empresa para a oferta inicial de ações. A partir de julho de 2000, o aumento acumulado dos reajustes nas tarifas superou a variação da inflação, medida pelo INPC.

Diferente do observado no Reino Unido, a Sabesp atuou muitos anos no Estado de São Paulo com relativa liberdade, pois a agência responsável pela regulação e fiscalização dos serviços de saneamento (Arsesp) foi criada apenas em 2007. A metodologia de reajuste de tarifas, que foi desenhada pela Sabesp, foi inicialmente adotada pela Arsesp e, apenas no início da década de 2010, foi substituída por outra metodologia que considera os ganhos de produtividade da empresa.

Ainda sobre a questão das tarifas, destaque-se que a política tarifária da empresa parece ter transferido os riscos do negócio para os usuários. Com base no princípio de que o equilíbrio financeiro da empresa é uma prioridade e deve ser preservado, a agência reguladora autorizou aumentos adicionais nas tarifas para compensar as perdas da Sabesp derivadas das medidas adotadas durante a crise hídrica, como a imposição do racionamento de água e a oferta de subsídios para a redução do consumo.

À semelhança do observado em outros países, há indícios que apontam divergências entre os interesses da empresa e os dos usuários. O crescimento mais rápido da rede distribuição em comparação com o da oferta de água reforça o argumento de Neto (2016) , que acusa a Sabesp de privilegiar os lucros em detrimento do atendimento da população.

Na mesma direção, a análise qualitativa dos investimentos mostrou que muitos projetos de expansão da oferta de água surgiram a partir de 2008, como é o caso do Projeto Tietê. Outras importantes iniciativas para a expansão de oferta de água, como o Projeto São Lourenço, a transposição do Rio Itapanhaú e a interligação dos reservatórios Jaguari e Atibainha, foram iniciadas quando a crise hídrica já afetava os usuários.

A análise qualitativa dos investimentos também mostrou que, no início da década de 2000, as atenções da empresa estavam voltadas para a expansão da coleta e tratamento de esgotos, possivelmente reagindo às prioridades estabelecidas pelo governo estadual, ainda nos anos 1990.

Note-se que uma investigação ampla sobre os impactos sociais e econômicos da crise hídrica de 2014/2015, em São Paulo, depende de informações não disponíveis neste trabalho. Como sugestão de agenda de pesquisa, é importante comparar as decisões operacionais e de investimento com o detalhamento geográfico da expansão das áreas atendidas pela Sabesp.

A discussão sobre a destinação dos dividendos da empresa é controversa. De fato, os valores distribuídos como dividendos poderiam reforçar os investimentos da Sabesp. No entanto, metade desses recursos foi transferida para o Governo do Estado de São Paulo e, portanto, permaneceram na órbita do setor público. Está além dos limites desse trabalho avaliar a destinação desses recursos dentre as prioridades do governo paulista. De outro lado, o trabalho mostrou que os opositores da privatização das companhias de saneamento contam com argumentos relevantes quando observada a experiência da Sabesp, posto que: (i) parte substancial do financiamento provém de recursos públicos e de agência multilaterais (em alguns casos, subsidiados); (ii) riscos podem ser transferidos para os usuários (devido ao princípio do equilíbrio financeiro dos contratos) e que; (iii) os indicadores de perda de água encontram-se, ainda, em patamares relevantes.

À semelhança do observado em outros países, os recursos oriundos de bancos públicos e de agências multilaterais permaneceram essenciais para o financiamento dos investimentos da Sabesp, embora tenha sido observado um pequeno crescimento na participação das captações no mercado privado, por meio da emissão de debêntures e de outros instrumentos financeiros.

Resumindo, a investigação das estratégias financeiras e operacionais da Sabesp mostrou que, na maioria dos casos, a empresa vem acompanhando as tendências observadas no cenário mundial, para o setor de saneamento. Crônicas deficiências na infraestrutura de saneamento no Brasil parecem explicar algumas divergências observadas entre as estratégias da Sabesp e as das empresas que atuam nos países centrais.

Neste trabalho, não se percebeu na análise da Sabesp a ideia de harmonia entre os interesses dos investidores e os dos usuários, que frequentemente é destacada nos textos dos autores que defendem as soluções de mercado para o saneamento. De fato, as situações de conflito estão presentes não apenas no debate na imprensa, mas, igualmente, nos documentos oficiais da empresa. Em 2016, o relatório da Sabesp enviado a SEC (Sabesp, 2016, p. 15) alerta que o governo do Estado de São Paulo, como acionista controlador, pode tomar medidas que não atendem os interesses dos acionistas minoritários e detentores de ADR.

Entre os defensores das soluções de mercado para o saneamento também é comum o argumento de que a operação privada do saneamento reduz as obrigações do setor público, liberando recursos para outras prioridades governamentais. A análise da estrutura de endividamento da Sabesp mostrou o contrário. Após quase vinte anos da abertura do capital, a Sabesp continua apresentando forte dependência de recursos públicos. O salto de investimentos ocorrido em meados da década de 2000 foi explicado, fundamentalmente, pelos fundos disponibilizados pelo governo federal. E mais: os relatórios enviados à SEC apontam, entre as vantagens do negócio, a disponibilidade de recursos públicos subsidiados.

O relatório da Sabesp encaminhado à SEC registra que […] uma parcela significativa das nossas necessidades de financiamento é obtida pelo financiamento de longo prazo a taxas de juros atraentes de bancos públicos governamentais brasileiros, agências multilaterais e bancos de desenvolvimento governamentais internacionais. Se o governo brasileiro mudar sua política em relação ao financiamento dos serviços de água e esgoto, ou se não formos capazes de obter financiamento de longo prazo a taxas de juros atraentes de agências multilaterais nacionais e internacionais e bancos de desenvolvimento, no futuro talvez não sejamos capazes de cumprir nossas obrigações ou financiar nosso programa de investimentos, o que pode ter um efeito material adverso sobre nossos negócios e condição financeira ( Sabesp, 2017 , p. 24).

Enfim, a investigação da experiência da Sabesp mostrou que a visão idealizada de que o capital privado pode prover melhores serviços com menores tarifas não corresponde à complexidade dos fatos. Tal percepção é reforçada pela literatura, com base nos relatos colhidos nos países centrais e nos subdesenvolvidos. Portanto, cumpre refletir, de forma ponderada, sobre as propostas em curso que tratam das mudanças nas políticas de saneamento no Brasil.

ALBERTO DE OLIVEIRA é economista, doutor em planejamento urbano e regional e professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Foi pesquisador visitante no Institute of Urban and Regional Development (Iurd) of University of California (Berkeley). 

Fonte: Portal Scielo

Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702020000200229&lang=pt

Imagem: Internet

Última modificação em Sexta, 18 Setembro 2020 12:02