23 de Setembro, 2015

Leia entrevista com professor José Esteban

Leia entrevista exclusiva do professor Esteban Castro, referência mundial na luta pela democratização do saneamento

A inclusão social garantida pela gestão pública do saneamento

Em entrevista exclusiva à Assemae, o professor José Esteban Castro, da Newcastle University, ressalta a importância de entender os serviços de água e esgoto como bens públicos

Referência mundial na luta a favor da democratização do acesso ao saneamento básico, o professor José Esteban Castro concedeu entrevista exclusiva à Assemae, durante sua última passagem pelo Brasil, em setembro desse ano. Na conversa, ele comenta os riscos da privatização da água e destaca a necessidade da participação social nas políticas de saneamento básico.

José Esteban estudou sociologia e psicologia na Universidade de Buenos Aires, fez mestrado em ciências sociais na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), no México, e obteve o doutorado em ciência política pela Universidade de Oxford, Inglaterra. Em sua tese, examinou a relação entre a gestão da água e a formação da cidadania no México, sob uma perspectiva de longo prazo.

Atualmente é professor de Sociologia da Newcastle University, no Reino Unido, além de atuar como professor visitante em várias universidades da Europa e América Latina, entre elas, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Castro também coordena a Rede Internacional Waterlat-Globacit, que desenvolve projetos de pesquisa sobre a interface entre a gestão da água, saneamento e saúde pública. Confira:

Como você avalia o processo de privatização da água no mundo? Deu certo ou não?

Na época moderna, quando os serviços de água e esgotamento sanitário foram introduzidos para as zonas urbanas eles eram privados, sobretudo, na Inglaterra e na França, países pioneiros desses sistemas urbanos. O que aconteceu durante o século XIX foi uma grande luta, porque a privatização não deu certo. As empresas somente forneciam água, não forneciam esgotamento sanitário, só estavam nos bairros mais ricos das melhores cidades, e eram monopólios territoriais sem concorrência e sem regulação. Essas cidades começaram a crescer, a ter muitos pobres sem acesso à água, o que culminou em novas questões, como o roubo de água. A partir do estabelecimento do contrato da cidade com uma empresa privada, uma pessoa que simplesmente tomava água de um poço acabou perdendo o direito de pegar essa mesma água sozinha. Foram muitos levados à cadeia. Há um registro histórico disso e muitas outras coisas, a exemplo das epidemias hídricas. Ao fim do século XIX, na Inglaterra, chegaram a uma decisão de, primeiro, pensar em regular essas empresas privadas porque elas não cumpriam com os parâmetros de qualidade da água que haviam sido estabelecidos e não estavam interessadas em ampliar a cobertura nas zonas pobres. Também, as empresas privadas só estavam interessadas em fornecer água, não estavam interessadas na “água suja”, e o Estado teve que desenvolver os serviços de esgotamento sanitário e drenagem. Finalmente, foi decidido que os serviços de água e esgotamento sanitário tinham que estar em mãos públicas.

Por exemplo, a cidade de Londres no ano 1902 anula os monopólios privados que existiam e cria uma empresa pública metropolitana. E foi um governo do partido conservador, que era o partido dos empresários, que tomou essa decisão. Não era um partido socialista, dos trabalhadores. Foi um partido de empresários que decidiu que a água tinha que ser pública. Uma lição fantástica que não é suficientemente lembrada. Nos Estados Unidos houve um processo paralelo, muito similar em vários aspectos. E na América Latina também, porque os monopólios privados, sobretudo ingleses, vieram para a América Latina. Assim começou em nossas cidades, aqui no Brasil temos Santos, São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, onde as primeiras empresas de saneamento eram monopólios privados e foram, em seu devido momento, tomados pelo Estado. Isso é uma história pouco conhecida nos debates atuais, mas está muito bem documentada.

Enfim, o debate que tivemos a partir dos anos 1990, quando se começa a privatizar precisamente borrou tudo aquilo, apresentando a privatização como a solução aos grandes problemas do setor público. Obviamente, todos sabemos que o setor público tem grandes problemas, isso ninguém nega, todos sabemos. A pergunta que eu faço é: Será que o setor privado vai resolver os problemas do setor público? Uma coisa é reconhecer que o setor público tem problemas para fornecer serviços de qualidade. A pergunta é: E por que vai ser o setor privado quem vai resolver? Em que lugar do planeta e em que período histórico isso aconteceu? Isso não aconteceu. Mesmo quando há uma empresa privada, o Estado sempre está por trás, com investimento, por exemplo. Então isso é uma lição fundamental. Agora, estamos vivendo um novo momento porque essas privatizações da década de 1990 muitas fracassaram na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina. A Argentina em poucos anos, desde que chegou ao governo o Presidente Nestor Kirchner em 2003, desprivatizou praticamente todas as empresas de água e esgotamento sanitário que tinham sido privatizadas nos anos 1990. Buenos Aires voltou às mãos públicas, por exemplo, Santa Fé também, Mendonza também. Mais não foi somente Argentina, Paris na França, Berlim na Alemanha, Atlanta nos Estados Unidos, estão entre muitas outras cidades que decidiram acabar com as privatizações implementadas na década de 1990 e retornar as empresas de saneamento ao setor público.

Importante dizer que a política privatista também aprendeu com seu fracasso dos anos 1990. A forma de privatização que haviam implementado não era tão bom negócio, pois pelo contrato as empresas teriam o compromisso de investir. Então hoje, elas têm novos modelos, múltiplos, adaptados. Alguns empresários privados até tem declarado “nós não queremos privatização”, “não nos interessa”, “é incorreto”, “não nos interessa ser proprietários da infraestrutura, somente queremos prestar um serviço se nos convidam”. Na prática, o que tem acontecido é que as empresas privadas aprenderam que não é bom negócio ter responsabilidade contratual pelo investimento.

Quais os riscos da privatização do saneamento básico para sociedade?

Muitas pesquisas nossas e de outros colegas mostram que, de fato, a privatização dos serviços de saneamento básico representa um risco para a inclusão social. Posso mostrar exemplos claros. Um clássico é o de Cochabamba, o que aconteceu lá. E devo dizer que a empresa pública de agora não é boa, não estou defendendo a empresa pública de agora, sei que os próprios bolivianos não estão contentes, mas a empresa privada que foi para lá, a primeira decisão que tomou foi subir a tarifa de água. A tarifa passou a representar 22% da renda das camadas mais pobres, isso está bem registrado.

O Banco Mundial diz que se você paga mais de 3% de sua renda na tarifa de água você é pobre de água. Na Bolívia, com a privatização o gasto das camadas mais pobres chegou a 22%. Na Argentina, em 2001, ao fim desse momento em que o dólar estava um a um com o peso, a fatura de água representava 10% do salário dos 10% mais pobres. É uma coisa terrível, é um padrão geral que você vê nesses casos. E eu poderia antecipar que isso vai ser sempre assim, afinal, qual é a lógica da privatização? É claro que é a obtenção de lucro, pois as empresas não são ONGs, ou seja, elas têm que fazer um lucro. E isso significa que não é permitido deixar de cobrar de quem não pode pagar, tem que cobrar uma tarifa que inclua a ganância das empresas, enfim, o padrão tem sido muito desastroso para as populações mais pobres. Às vezes, as empresas dizem “ah se não está no contrato eu não tenho porque levar água aos pobres”. Essa é a lógica. Não se trata de endemonizar o setor privado, aqui esse debate tem sido perverso. Alguns dizem que estamos indo contra o setor privado. Isso é ridículo, pois todos estamos no setor privado de alguma forma porque existe uma sociedade de mercado. O que nós estamos indo contra é para a privatização dos serviços essenciais, incluídos os de água e esgotamento sanitário. O setor privado tem um papel a cumprir em certas áreas. Entretanto, é preciso entender, como entenderam até os empresários da Inglaterra no século XIX, que os serviços básicos de água e esgoto são bens públicos e devem ser fornecidos mesmo para quem não podem pagar.

Quais os motivos para investir na gestão pública do saneamento básico?

Há serviços, como os água e esgotamento sanitário e outros serviços urbanos similares, em que o mercado não é eficiente no seu fornecimento. São as falhas de mercado, essa é a teoria econômica dos bens públicos. São falhas de mercado que exigem um papel ativo do Estado. Em zonas rurais, as empresas comunitárias ou as cooperativas também têm sido mais eficientes que o mercado para fornecer esses e outros serviços básicos por distintas razões. Isso significa que tem que ser fortalecido o setor público e também o setor comunitário. É preciso pensar nas parcerias público-públicas e público-comunitárias, estas últimas, sobretudo, pelas áreas rurais. 

Há outro fator perverso da política dos anos 1990 - as políticas neoliberais - que fragilizaram o Estado, porque a ideia era diminuir o Estado, enfraquecer sua capacidade de fornecer e regular os serviços. Em 2004, o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial do Banco Mundial, que havia promovido todas essas políticas, reconheceu que o Estado não deveria abandonar tudo às mãos do setor privado, afirmando que o setor privado tem muitos problemas, especialmente quando se trata de servir aos mais pobres. E disse também: nenhum país do planeta conseguiu avançar, por exemplo, na redução da taxa de mortalidade infantil e outras coisas, sem um papel ativo do Estado. Agora, a pergunta é: como vai fazer o Estado se não tem quadros? Então, fortalecer o Estado significa realmente o investimento duro em formar as pessoas que podem trabalhar eficientemente nos serviços públicos. É preciso investir na capacitação, indo contra o modelo de Estado mínimo proposto pelo neoliberalismo extremo.

Qual sua avaliação sobre a participação social no saneamento básico?

Creio que a participação social é um assunto fundamental. Eu comecei a trabalhar o tema da água estudando as lutas pela água, entendendo elas como lutas pela cidadania. Foi no México. Acho que isso é um ângulo muito importante que também deve ser fortalecido, por exemplo, na discussão dentro dos municípios. O tema da participação social como se promoveu e se promove no Brasil tem um ângulo muito correto, uma ideia que vem precisamente dessas lutas pela democratização. É claro que também temos que aprimorar, pois verdadeiramente o que acontece é que há formas de participação de cima para baixo, muito instrumentais, às vezes por necessidade ou porque não se sabe como fazer diferente. Promover a participação social para chegar à legitimidade de uma política não incorreto, mas é muito limitado. 

Existe uma forma mais genuína de mobilizar a população em geral, uma participação realmente mais legítima, mais substantiva, que termina tendo impacto nas políticas e até no controle da implementação delas. O Brasil tem bons exemplos, mas são limitados e alguns deles morreram muito jovens. Isso porque o sistema é um pouco cego, rejeita esse tipo de processo, e muitas vezes um gestor mal intencionado não entende porque as pessoas devem participar. Em reuniões de trabalho, por exemplo, vários engenheiros já me questionaram porque eles teriam que explicar o procedimento das obras para as pessoas da favela. Se você não prepara esse terreno é muito difícil, e acho que ainda estamos muito verdes. 

Há uma participação muito mais autônoma da sociedade que às vezes toma forma de confrontação quando não existe uma boa recepção por parte do Estado. Esse processo deve ser melhor entendido. Também é preciso estabelecer um diálogo entre o Estado e a população, porque aí está a força social que realmente deve ser levada em conta e que pode fornecer a dinâmica da mudança necessária.

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Última modificação em Quinta, 24 Setembro 2015 15:40
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